por Lorena Kalid
São 5 os comprimidos depois do almoço. Cada um desce num gole, no mínimo, o que dá 1 copo cheio de água e meio. São os suplementos receitados pela médica que pronuncia orgulhosa “dosar” e “hormônios”, em discurso quase convincente, embora a sensação seja de os comprimidos ficarem pelo caminho molestando o esôfago.
No país onde muitos ficam pelo caminho, as analogias passeiam. Um jovem do tipo informado lambe-lambe os postes da cidade e grita que aqui a vida vale menos que suplementos. E que manipulados são sempre os outros. 'Minha denúncia, minha literatura'.
Enquanto milhões de brasileiros põem os pés no mapa da fome, a tendência nas artes, qual na medicina de Instagram, segue sendo as pílulas. Temas embaralhados em flashes, frases curtas, imagens do futuro impossível. Ao menos é o que atestam aqueles outros suplementos, ditos literários. Não há saída, as tendências engolem tudo. Renda-se, rapaz, publique seu conteúdo.
Nem Deus sabe o que as tendências fazem hoje com as memórias que ainda virão. Sorte é que a saudade também tende, como a música triste que toca na vitrola vintage, girando e girando no disco bambo, pulando lombadas. Mas que mau gosto essa única felicidade visível que jaz no ruído da agulha suja.
Sem graça, nauseadas, as tendências de ontem vomitam em nossa cara as nossas próprias memórias. É preciso arranhar os discos, jogá-los fora, ou eles nunca serão relíquias — dirá de novo o sábio, agora agonizando.
Os suplementos literários se amontoam pálidos na estante, ofuscados pelo documentário na tv, fascinante, exibindo elefantes bebezinhos que brincam empanando a tromba na areia, de um lado e de outro.
Pena que deu a hora de levantar, tirar a mesa, lavar os pratos, tudo bem rapidinho, voltar já pro computador, vidrar os olhos, não ver a fome.
Comentarios