por Carlos Araujo
Imagine um tempo sem pandemia, você visitando uma cidade do interior. Ilhéus, Jundiaí, Uberaba. Paz reconfortante, convite para estacionar na praça, tomar sorvete enquanto o som do carro executa um pop. Imagine a cidade acolhedora totalmente vazia. Não há ninguém nas ruas, apesar dos estabelecimentos estarem abertos. Vem a lembrança dos antigos filmes de western em que o forasteiro põe os moradores à espreita, receosos pelo eventual bandido. Pare o exercício de imaginação. Nessa semana o Brasil perdeu uma cidade de médio porte em pouco mais de um ano. 400 mil óbitos.
Muitas das histórias ficcionais a nos impressionar se passam em lugares imaginários, desde o reino de Sildávia nos quadrinhos de Tintin aos países e planetas imaginários dos heróis. Na literatura, há Macondo, o povoado erguido por García Márquez para reformular a América Latina, ou a Yoknapatawpha de Faulkner, revelando o lado decadente e sombrio do sul dos EUA no século XX. Talvez a grande metáfora para o Brasil atual esteja na novela mexicana Pedro Páramo, de Juan Rulfo, com seu vilarejo esquecido e um tanto misterioso, Comala, visitado pelo protagonista a fim de conhecer seu pai, onde porém encontrará apenas irmãos andando a esmo pela terra acabada e injusta.
No Brasil, na mesma semana em que devastaram 400 mil, o principal ministro disputa com o presidente quem inventa as maiores atrocidades, com a base científica de meninos no recreio da escola e a imaginação de um verme: tenta ressuscitar as natimortas teorias da conspiração sobre a origem do vírus, detecta que o problema são as pessoas quererem viver, esperneia por pobres frequentarem a universidade. Compõem a alegoria, ainda, o supremo líder acenando ao vento, enquanto um escudeiro infiel se camufla de cidadão comum para tomar vacina.
Segundo os péssimos autores dessa tragédia, o Brasil não precisa existir para todos, muitos personagens não devem ousar sair do papel. As previsões indicam que até o final do ano os casos batam um milhão. Uma capital inteira. Trata-se da saga diária de uma nação continental que se encolhe como ilha perante a população assustada. Brasil cidade fantasma. Terra ficcional.
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