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  • Foto do escritorTaipa

Desacelerada


por Stéfane Silva

@entretempos_poeticos


Domingo de quarentena. Apoio o café na mesinha de canto enquanto a gata se enrosca no sofá. Ela dá uma, duas voltas. Tão metódica! Observo seu movimento. Percebo que há muito é isso que faço: observar. Espero o tempo passar enquanto um futuro ainda indistinto vem vindo, devagar demais, em minha direção.


A gata encontra uma posição confortável. Combino com ela que vamos passar a manhã assim, juntas, eu, ela e essa caneca decorada com lhamas. Considero o ronrom que se segue como aprovação.


Estico o braço com cuidado para não incomodar a bichana, que já fechou os olhos, e pego o celular. Abro o Instagram. Deslizo o dedo pela tela, distribuindo likes em fotos do filho de uma amiga. Hoje, ele completa um ano. Já? Faço as contas e percebo que curti 11 “mêsversários”.


Sinto tanto carinho por esse bochechudo! Sei qual é seu brinquedo favorito, que já lhes começam a irromper os dentes e a eclodir as primeiras palavras. Mas sou uma estranha para ele.


Acaricio o pelo dourado da dorminhoca e sigo o feed, inundada por fotos de gente querida. Suspiro a falta de cada um daqueles sorrisos que não encontro desde 2020. Vivemos nossos afetos isoladamente, intermediados por pixels em stories de até 15 segundos.


Contra todas as expectativas, a pandemia me trouxe, além de novas manias, novos amigos. Pessoas com as quais compartilho bem-querer profundo, além de mensagens e figurinhas, carinhos e confidências, sonhos e desafios.


Amizades que, sob o céu do Planalto Central, desabrocham entre muitos encontros virtuais realizados, mas nenhum abraço enlaçado. Não conhecemos nossos corpos, alturas e cheiros. Enxugamos lágrimas à distância, dividimos risos pelos fones de ouvido.


As mensagens trocadas estão lá, nos apps, nos e-mails, nos áudios de alguns minutos que me recuso a ouvir em velocidade acelerada. A existência desse afeto é incorpórea, uma potência meio realizada, triste no contexto, porém cheia de expectativas e promessas.


Enquanto a gata se espreguiça, não resisto ao anseio e escuto, mais uma vez e de novo, aquele áudio que me fez sorrir chorando: “quando tudo isso passar, esteja preparada para um abraço tão longo, que vou te deixar sem-graça!”.




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